A Fênix do cerrado

No Egito e na antiguidade clássica, vivia um belo e esplendoroso pássaro, de origem mítica, com uma plumagem escarlate e dourada e com um canto tão melodioso que encantava a qualquer um. A Fênix, como era chamada, era dotada de uma capacidade extraordinária: tinha uma longevidade sem precedentes. À medida que sentia a morte se aproximar, ela mesma construía um ninho de ervas aromáticas, e com o próprio calor do corpo – cujas penas pareciam labaredas – ateava fogo a si própria e transformava-se em cinzas. Dessas cinzas ressurgia outra ave Fênix e, assim, da morte pelo fogo surgia uma nova e promissora vida.


Essa lenda egípcia remete-nos a uma característica bastante peculiar do cerrado: o fogo como fator de continuidade da vida. Parece ilógico imaginar que o fogo possa ser um fator essencial à manutenção da biodiversidade do cerrado, mas se analisarmos algumas de suas principais características, veremos que essa não é uma afirmação tão sem sentido.


Fogo inevitável

A zona de ocorrência dos cerrados é de clima quente e seco, o que favorece a ocorrência de queimadas, sejam de origem natural, sejam causadas pelo homem. O acúmulo de biomassa seca, as condições de baixa umidade e alta temperatura da região e a época do ano, juntos, fazem com que o surgimento do fogo no cerrado seja inevitável. Antes mesmo da ação do homem, tempestades de raios já causavam incêndios de grandes proporções.


A vida que surge das cinzas

Quando ocorre uma queimada, a temperatura eleva-se rapidamente. No ar, ela pode chegar a 800ºC ou até mais. Porém, no solo, a história é outra. Apesar da elevação rápida de temperatura também ocorrer, ela é momentânea, já que o fogo cessa rapidamente. E no solo, essa alta temperatura pode ser a registrada até a profundidade de 5 cm. Basta uma pequena camada de terra para que se isolem os sistemas radiculares e caules subterrâneos, dos efeitos devastadores do fogo, acontecimento que determina a sobrevivência às queimadas. O rebrotamento desses órgãos traz o verde novamente à paisagem, renovando a fisionomia da vegetação. Além disso, a germinação das sementes de algumas espécies pode ser facilitada pelo fogo – principalmente naquelas em que a semente é impermeável à água. A elevação rápida da temperatura pode causar fissuras na semente, favorecendo, assim, a entrada de água e iniciando o processo de germinação.


Um outro efeito de fundamental importância ecológica para o cerrado é a ciclagem de nutrientes do solo. A queima da palha seca e morta traz de volta à superfície do solo, por meio das cinzas, os nutrientes anteriormente indisponíveis. Além disso, há indicações de que os nutrientes na superfície impedem a lixiviação do solo (perda de minerais) pela água das chuvas. Porém, é importante ressaltar que nem todos os nutrientes voltam à superfície: grande parte deles é perdida através da fumaça. Felizmente, os nutrientes que ficam em suspensão na atmosfera sob a forma de névoa da queimada retornam ao solo, seja pela ação da força da gravidade, seja por serem arrastados pelas gotas de chuva.


A transformação das fisionomias de cerrado também está intimamente relacionada ao fogo. As queimadas acabam por atingir a vegetação lenhosa (árvores e arbustos), mais sensíveis à ação do fogo. A densidade desse estrato acaba diminuindo, abrindo a paisagem para espécies arbustivas. Depois de algumas décadas, árvores crescem novamente, reconstruindo a paisagem, o que mantém a biodiversidade no que se refere à fisionomia e riqueza de espécies.


Espantosa é a rapidez com que novos brotos são emitidos logo após uma queimada. Poucas semanas são necessárias para que o verde volte à tona, deixando de lado o pálido cinza impresso pelo fogo. Muitas espécies, ainda, ressurgem com flores, e o cerrado, quase que milagrosamente, transforma-se em um verdadeiro jardim.

A tortuosidade do fogo

Você já parou pra pensar o porquê dos troncos típicos do cerrado serem tortos? E o porquê de suas cascas serem tão espessas? Pois é. A resposta parece ser: fogo! Adaptadas durante anos com a condição de clima seco e quente da zona de ocorrência do bioma, as espécies típicas do cerrado desenvolveram uma fisionomia peculiar, resultante da constante ação das queimadas. Parece que o fogo impede o crescimento de caules retilíneos (ou monopodiais), à medida que provoca a morte de gemas terminais, que são as estruturas responsáveis pelo crescimento em altura. Com o brotamento das gemais laterais, responsáveis pelo crescimento lateral, o caule acaba tomando essa aparência tortuosa tão característica. A espessura do caule também parece ser uma adaptação ao fogo, já que o súber, constituinte da casca, serve como um isolante térmico, impedindo, assim, a morte de tecidos vivos mais internos ao caule, principalmente no estrato arbustivo e arbóreo.


Bicho que corre de fogo

Quando se fala em incêndios em áreas de reserva ambiental, não se deve esquecer dos danos à fauna. Instintivamente, os animais sabem se proteger do fogo à sua maneira: fugindo. Antigamente, já ocorriam queimadas em cerrados iniciadas por um raio, por exemplo. O grande problema de hoje em dia, porém, está na limitação à liberdade dos bichos imposta pelo homem. Os animais escapavam do fogo se refugiando em áreas vizinhas. Tais áreas devastadas pelo fogo podiam ser repovoadas por populações adjacentes. Hoje, porém, a situação é diferente. Não existem mais vegetação e fauna naturais ao redor de uma área de preservação. Há fazendas com plantações e cercas de arame farpado impedem os animais de escaparem do árduo e mortal calor.


Porém, não se deve conferir ao fogo apenas o atributo de devastador quando se fala em fauna. Logo após uma queimada, com o ressurgimento de flores, há imensa disponibilidade de néctar e pólen, um verdadeiro banquete para muitos insetos. Algum tempo depois, com a polinização facilitada por esses agentes, essas flores produzirão frutos e sementes que servirão de alimento para muitos outros animais. Por isso, algumas espécies – como a ema e o veado-campeiro – aparecem em grande quantidade, atraídas pela farta disponibilidade de alimento.


Conservação pelo fogo

Parece bastante controverso sugerir a preservação do cerrado ateando-se fogo. Mas não. Protege-lo totalmente do fogo é impossível, visto que as queimadas ocorrem naturalmente por fatores já mencionados anteriormente. Logo, é razoável que se façam queimadas programadas a fim de se evitar incêndios desastrosos e de gravidade bastante ampla. Utilizando-se de queimadas de forma adequada, levando-se em consideração o objetivo do seu uso para o manejo do cerrado, a direção do vento e as condições climáticas da região, pode-se diminuir periodicamente a biomassa seca e evitar possíveis grandes danos de uma queimada não planejada. Dessa forma, atear fogo em áreas limitadas e restritas reduziria os efeitos de incêndios predatórios e descontrolados, podendo ser muito benéfico para o ecossistema.